quarta-feira, 7 de março de 2007

O zen e o samurai

Palestra proferida em Brasília para alunos do Instituto Niten em 17 de abril de 2005
Por Monja Gyoku En


Conteúdo

. Resumo histórico
. Musashi
. Takuan
. As práticas ascéticas
. Rinzai e os koans
. As artes que surgiram do Budismo Zen
. Mestre Dogen
. A meditação zazen
. O hara
. Notas
. Bibliografia



Estou aqui para falar sobre um tema que diz respeito à atividade de vocês nesta escola e que também diz respeito à minha atividade na vida. Sou monja zen budista e vocês estudantes de artes marciais e nós sabemos que monges e samurais sempre conviveram pacificamente, respeitosamente e aprenderam muito uns com os outros e ambos aprenderam muito com os ensinamentos budistas. Na verdade eu não entendo nada sobre samurais, e quando aceitei o convite pensava apenas em falar sobre o Budismo Zen. Porém, quando solicitei que me mandassem o programa, percebi que já havia um título para a minha palestra “O Zen e o Samurai”, e fiquei surpreendida de imediato, mas, em seguida lembrei-me que uma amiga me havia oferecido o livro Musashi [1] o qual terminara de ler. Iniciei então a agradável tarefa de ler o tão famoso romance épico, baseado na história japonesa que narra a saga do guerreiro e mais famoso samurai do Japão: Miyamoto Musashi. Foi daí tirei minha inspiração para esta palestra.

Muitos de vocês já devem ter lido as emocionantes aventuras e a fascinante história que se passa no Japão da época dos xoguns. O budismo havia sido introduzido no Japão em 538; e do século VI ao século IX o budismo nipônico foi quase que exclusivamente uma religião de estado. No século IX, Saicho introduziu a escola Tendai, e Daishi introduziu a escola Shingon. Nos séculos XII e XIII, época em que o estado Aristocrático japonês entra em crise, surgem as escolas devocionais: Terra Pura, fundada por Hônen, e a Verdadeira Escola da Terra Pura, fundada por seu discípulo Shinran. Finalmente surge o Zen-Budismo nos seus dois principais ramos Soto e Rinzai. O movimento Rinzai foi introduzido por Eisai (1141 –1251), tendo encontrado grande aceitação por parte da nobreza guerreira do Japão feudal. O movimento Soto foi introduzido por Doguen (1200 – 1253), que foi discípulo de Eisai e posteriormente viajou a China onde se iniciou na escola Soto com o mestre Tendô Nyojo.

Enquanto o Budismo Zen se difundia entre a classe guerreira, influenciando decisivamente o desenvolvimento das artes, da moral feudal e da cultura em geral, as escolas devocionais encontraram grande aceitação entre as classes populares. É exatamente neste contexto que nós nos deparamos com Takuan e Musashi.

Takuan (1573 - 1645) foi um monge zen proveniente da linha rinzai, famoso por sua Carta a Tajimanokami, dirigida a um mestre de esgrima para lhe explicar a coincidência entre a prática das artes marciais e a prática do zen. Aos 10 anos já era noviço; aos 14 foi ordenado pelo abade Kisen do templo de Shofukuji; estudou em Kyoto e Nara; e foi discípulo de renomados monges com os quais aprofundou seus estudos. Não aceitava cargos de direção, e muito menos ofertas de templos feitas por suseranos influentes, preferindo vagar pelas províncias como mendigo, tendo apenas por companhia seus “piolhos de estimação”. Este monge era muito divertido, e tornou-se para Musashi um mestre, uma inspiração e um ideal de grandeza.

Musashi, que se presume tenha vivido entre 1584 e 1645, era um desses samurais condenados ao desemprego que se torna um pequeno tirano, derrotando impiedosamente quem encontra pela frente. Surge então o monge Takuan que armado apenas de sua malícia e de preceitos filosóficos zen-budistas captura Musashi e o coloca à prova. A partir desse contato, Musashi se dá conta de ser um homem e não um animal selvagem; e quando se conscientiza desta verdade, sua vida torna-se preciosa. Conclui que artes marciais e valentia não são sinônimas, e passa então a aprimorar-se como ser humano, realizando práticas ascéticas. Sendo um autodidata, tornou-se um admirável espadachim ao estudar o caminho das artes marciais buscando o aprimoramento de suas qualidades e de seu caráter de modo contínuo.

Naqueles tempos, tipos excêntricos, como samurais empenhados em solucionar o grande enigma da vida e morte, ou guerreiros que haviam despertado para a verdade de que o estudo das artes marciais exigia uma simultânea iluminação espiritual, freqüentavam os templos. Havia a presença muito maior de samurais do que de monges nas sessões de meditação zen.

O que buscavam estes samurais? Buscavam uma autodisciplina no estilo zen: o domínio absoluto sobre o próprio íntimo e um sentido de unidade com a natureza ao redor. Ou seja, habilidades marciais, autodisciplina espiritual e sensibilidade estética, ênfase ao cultivo do autocontrole e da força interior através de uma autodisciplina austera. As práticas ascéticas eram mormente preconizadas pelo Shuguendô, religião nascida do sincretismo entre o Budismo e elementos da religião primitiva japonesa. O Shuguendô recomendava a seus adeptos a prática de severíssimas técnicas ascéticas no alto de montanhas, para adquirir sabedoria e poderes mágicos. Acreditavam que só perseverando no ascetismo poderiam purificar-se.

Buda Shakyamuni, praticando o ascetismo descobriu a inutilidade deste método. O ascetismo não traz o menor proveito, dizia. Graças aos preceitos, à concentração e à sabedoria ele alcançou o caminho da iluminação, a mais elevada pureza. Para isto é necessário seguir o caminho do meio. Para obter um bom som em um instrumento de cordas, estas não devem estar nem tensas e nem frouxas demais. O mesmo se dá com a prática do Dharma: aplicação demasiada traz inquietação à mente e folga demasiada traz negligência.

Por esse motivo, outros aspectos interessantes do budismo zen eram cultivados pelos samurais além das artes marciais. Estou falando das artes difundidas e praticadas na época por quem quer que desejasse aprimorar-se como ser humano. A arte do chá, da pintura sumiê, dos arranjos florais, chamada ikebana, da escultura, da cerâmica, da música e da poesia. É interessante observar a força desse ensinamento que se tornou tradição e vem sendo difundido pelo mundo inteiro.

O período Fujiwara (995 a 1027), particularmente, teve uma bela literatura e caligrafia. Havia muita liberdade. Os artistas e eruditos estudavam artes, filosofia e religião. Porém, algumas das caligrafias do fim do período eram formais demais e mostravam muito ego do artista. Não é possível ver nenhuma personalidade na caligrafia desses artistas. Assim, em todas as artes a personalidade deve ser bem treinada, sem conter muito ego em si. Ego é algo que cobre sua boa personalidade. Todos têm caráter, mas se vocês não treinarem, o caráter será coberto pelo ego. Através de muita prática e treino, nós nos livramos do ego. Como se diz no budismo, suavizamos a seda, lavando-a várias vezes, até que os fios fiquem brancos e macios o bastante para tecer; temperamos o ferro batendo-o enquanto quente, não para forjá-lo ou dar forma a ele, mas para torná-lo mais forte. O treinamento é algo semelhante. Como Musashi, quando se é jovem você tem muito ego, muitos desejos. Por meio de treino, você esfrega e lava seu ego, tornando-o bem macio, como seda branca. Ainda que você tenha fortes desejos, se os temperar o bastante, obterá ferro forte e afiado, como uma espada japonesa. É assim que nós treinamos.

O zazen, a prática zen de meditação que leva ao autoconhecimento, não busca na experiência meditativa a passividade, a imobilidade ou a eliminação gradativa dos pensamentos. Busca a participação ativa na construção de um mundo melhor, ensina o zelo pelos valores humanos e pela dignidade da vida. Todos os que experimentam a meditação se beneficiam.

Quando há um trabalho interior e um ambiente de solidão, é muito fácil meditar. Se a pessoa começa a meditar e consegue observar algumas mudanças e realizações na sua vida, aquilo é verdadeiro. Mas se não ocorrem mudanças nem realizações, significa que não está tendo a experiência real. Muitas pessoas pensam na meditação como um meio para atingir algum tipo de experiência mística. Porém a meditação zen objetiva trazer a pessoa para a realidade: estar em contato com o universo inteiro significa estar com os pés bem plantados na terra, utilizar sua espiritualização a serviço do mundo, compartilhando valores espirituais com os outros. Quem medita vive a sua vida, mas se mantém conectado a tudo. A verdadeira meditação ajuda a ter uma ligação mais adequada com a família e nos relacionamentos em geral. É bem verdade que no caso dos monges e dos samurais, são mais intensos os treinamentos, assim como as relações com o mundo são maiores, e exigem mais tempo e dedicação. Mas os jovens praticantes não devem deixar de se dedicar ao culto das relações familiares, pois isto reflete seu crescimento interior. Em resumo, a espiritualização ajuda a pessoa no seu relacionamento com os demais e com o mundo e o zen ensina o autoconhecimento. Nas artes marciais não se pode vencer sem autoconhecimento, e na medida em que meditamos nossa capacidade de realização cresce.

Mestre Suzuki dizia [2]:

"Shikantaza, nosso zazen, é somente a prática de sermos nós mesmos. Quando não temos expectativa alguma, podemos ser nós mesmos. Essa é a nossa maneira, nosso caminho, viver plenamente cada momento do tempo. Assim, tente sentar-se em shikantaza durante algum tempo, todos os dias, sem se mover, sem esperar nada, como se estivesse vivendo seu último momento.

"Primeiro pratique a expiração suavemente, depois a inspiração. Se você expirar suavemente, estará entrando na perfeita e completa serenidade da sua mente. Ao expirar desse modo, sua inspiração prosseguirá naturalmente, a partir daquele ponto. Todo o sangue fresco, que traz tudo que está de fora, tomará seu corpo. Você estará completamente renovado. Depois você começa a expirar, para expandir e lançar aquela sensação fresca no vazio. Assim, a cada momento, sem tentar fazer nada, você continuará o shikantaza. A expiração é o ponto importante. Em vez de tentar sentir si mesmo enquanto inala, confunda-se com o vazio enquanto estiver
expirando.

"O shikantaza completo talvez seja difícil por causa da dor nas suas pernas ao fazê-lo sentado com as pernas cruzadas. No entanto, ainda que você sinta dor nas pernas, você consegue fazê-lo. Mesmo que sua prática ainda não seja boa, é possível fazê-lo. Cuidar da expiração é muito importante. Morrer é mais importante do que ficar vivo. Ao tentarmos ficar vivo o tempo todo, os problemas aparecem. Em vez de tentarmos estar vivos ou ativos, se pudermos ficar serenos e morrer ou nos confundirmos no vazio, então, naturalmente, sentiremos bem. Não deixe de praticar shikantaza em todos os momentos. O vazio é a mãe de tudo, de onde todas as coisas surgirão."


O sentar-se correto não só exterior, mas também interiormente, só é possível com o hara [3]. Significa a “disposição” do sentar-se com estabilidade e que o centro corporal interior está localizado no lugar certo. Para transformar-se em alguém cujo centro verdadeiro é adquirido e assegurado, deve-se exercitar a barriga, fortalecê-la de forma permanente.

Reconheço a influência cultural que nos faz classificar a mente como sendo mente oriental (espiritual) ou mente ocidental (material). Mente é mente. O mesmo se dá em relação ao hara. Hara é hara. O problema está na localização da mente para o ocidental e para o oriental. Para nós a mente está na cabeça e para o oriental ela se encontra na barriga. Vocês já ouviram a expressão “a questão é mais embaixo”. Parece que nós já desconfiamos; isto significa que nossa intuição funciona. Quer dizer que nosso discernimento não funciona apenas através do intelecto e da razão.

O hara é o centro do corpo do homem, localiza-se a uns 5 cm abaixo do umbigo este ponto é chamado de kikai ou tanden. Porém o corpo físico é mais que algo biológico e fisiológico. Significa ao mesmo tempo o centro espiritual, o sentido da natureza espiritual. Diz respeito essencialmente ao caráter e á determinação da vida do homem. O hara é, sobretudo, o resultado de constantes exercícios individuais e da disciplina, portanto fruto de um desenvolvimento pessoal responsável. Quando se diz que uma ação acontece com a barriga, quer dizer que ela acontece com a totalidade humana, algo mais profundo, que parte da essência.

Hara no aru hito – um homem com barriga. Aquele que possui centro está equilibrado, tem algo de tranqüilo e abrangente, tem amplitude humana, tem grande espírito. È generoso, bondoso. Tem o juízo tranqüilo e equilibrado. Ele tem a medida para aquilo que é importante. Ele explica a realidade com calma e sem disfarces, atribuindo-lhe o verdadeiro peso. Aceita a realidade com calma, nada pode assustá-lo, tirá-lo de sua serena disposição. Isto ocorre em conseqüência de uma determinada disposição interior. Graças a uma característica de profunda flexibilidade ele se controla e se comporta com grande naturalidade e calma correspondentes a cada situação. Significa o homem que sabe o que fazer no momento certo.

Finalmente gostaria de dizer que esta época em que vivemos é de muita insegurança em relação ao futuro devido ao aumento da violência, crise econômica, crise de valores, desestruturação familiar. A forma de se sentir seguro neste mundo onde nada mais parece estar garantido está relacionada à estabilidade interior. Tudo nos afeta desde que sejamos dependentes de situações externas, acontecimentos globais, valores materiais. Porém, essa mesma situação pode nos conduzir à busca de nossa fonte interna de segurança e de nos tornarmos mais independentes de fatores externos. Só a estabilidade interna, a força interna e a identificação interna podem dar ao indivíduo mais confiança. Nada é estável no mundo físico. Quando a mente está presa ao mundo externo também sofre estas flutuações. É possível fazer com que a mente permaneça atenta através da meditação. Assim, tornamos nosso intelecto claro, nossa alma purificada, nossa vontade poderosa. Pensamentos geram vibrações. Bons pensamentos geram vibrações poderosas. Cada um deveria perguntar a si mesmo qual o impacto das suas ações, de seus pensamentos e de suas escolhas no mundo. Se quero paz, devo me questionar: estou sendo pacífico? Se quero tolerância e não violência, preciso verificar: estou praticando estes valores no meu dia-a-dia?

Bem, são meus sinceros votos que ao abordar este tema possa ter contribuído para o crescimento de vocês no caminho que abraçaram e (parafraseando Eiji Yoshikawa [1]): Que estes ensinamentos possam ser como raios de sol varrendo a superfície da terra e iluminando até as raízes das plantas. A coisa mais importante é continuar com a prática correta ou a prática fundamental.

Muito obrigada, a todos.

Nota 1

Segundo Pine, em sua nota histórica introdutória a “O Ensinamento Zen de Bodhidarma” [4], o Zen chega à China trazido por Bodhidharma, monge indiano que aporta primeiro em Cantão, nos fins do século V. A despeito da popularidade do budismo na China naquele período, Bodhidharma, transmitindo um verdadeiro espírito do budismo, teve poucos discípulos. Além de Sheng-fu, que foi para o sul logo após sua ordenação, os outros discípulos registrados na literatura são Tao-yu e Hui-k’o, que estudaram com o Monge por cinco ou seis anos. Pelo que é conhecido, Tao-yu aprendeu o Caminho, mas nunca ensinou. E foi a Hui-k’o quem Bodhidharma confiou o robe e a tigela, símbolos da continuação da sua tradição, além da cópia de uma tradução do Sutra Lankavatara. Bodhidharma foi um ser humano notável, tendo como uma marca sua maneira de meditar sentado, voltado para uma parede branca. Na transmissão de sua linhagem budista, passada pelo Buda Shakyamuni primeiro a Maha-Kasyapa, Bodhidharma é considerado o Vigésimo Oitavo (e na China o Primeiro) Patriarca. A transmissão prossegue até Hui-Neng, sempre referido como o Sexto-Patriarca.


Nota 2

Após a palestra foi exibido um filme sobre a vida de Mestre Dogen, que teve seus primeiros contatos com o zen como discípulo de Eisai, tendo posteriormente viajado à China, onde se iniciou na escola Soto com o mestre Tendo Nyojo. Dogen é considerado um dos pensadores mais originais do budismo japonês, e também um de seus escritores mais fecundos. Nos dias atuais, diversos estudiosos ocidentais têm se voltado para a tradução e análise de Dogen, que também tem sido apontado, por não poucos, como o mais importante filósofo japonês de todos os tempos.




Bibliografia

E. Yoshikawa, Musashi (Estação Liberdade, S. Paulo, 1999).
S. Suzuki, Nem Sempre é Assim (Religare, S. Paulo, 2002).
K. G. Dürckheim, Hara: O centro Vital do Homem (Pensamento, S. Paulo, 10 ed. 1998).
R. Pine, The Zen Teaching of Bodhidharma (North Point Press, N. York, 1995).